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“Núcleo do demônio”: A 3ª bomba atômica que os Estados Unidos queriam detonar no Japão

Leonardo Ambrosio

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A história do 'Núcleo do Demônio', a bomba atômica planejada para Tóquio, que teve fim trágico no laboratório e vitimou cientistas americanos

Todo mundo sabe sobre as bombas atômicas lançadas pelos Estados Unidos no Japão durante a Segunda Guerra Mundial. De um lado, muitos defendem que elas foram cruciais para frear as ações do Eixo e terminar com o conflito que já causava incontáveis baixas no mundo inteiro.

Por outro, temos todos os reflexos terríveis das explosões nas cidades de Hiroshima e Nagasaki, bem como em áreas próximas aos dos grandes centros urbanos. Doenças genéticas, mutações, danos ambientais, são incalculáveis os danos que os japoneses tiveram que enfrentar por conta das bombas lançadas em seu território, mas o que muita gente não sabe é que os planos do ocidente não previam “apenas” duas bombas.

É indiscutível que as explosões em Hiroshima e Nagasaki ajudaram a forçar os japoneses a se retirar da guerra, acelerando o final do conflito que já se arrastava por anos, causando um rastro gigantesco de destruição. Mas os americanos não tinham como ter certeza de que as duas bombas seriam suficientes para atingir este resultado esperado.

Os efeitos imediatos das explosões no Japão chocaram até mesmo os americanos. As duas bombas causaram mortes em uma escala até então inimaginável, de forma assustadora. Muitas pessoas foram envenenadas pela radiação, enquanto outras foram queimadas vivas e até mesmo vaporizadas pela onda de calor.

O Japão se rendeu uma semana mais tarde, no dia 15 de agosto, mas caso o imperador não tivesse sido tão rápido na tomada de decisão, as coisas poderiam ter sido piores. Isso porque, em 14 de agosto, o presidente americano Harry Truman teria informado ao embaixador britânico dos EUA que uma terceira bomba atômica seria lançada no Japão. Desta vez, sobre Tóquio. A bomba, assim como Little Boy e Fat Man, também tinha o seu “apelido”: Rufus. Ela era, na verdade, bastante parecida com a Fat Man, com um núcleo de plutônio de 6kg, e poderia ter efeitos devastadores na capital japonesa.

Porém, com o anúncio da rendição dos japoneses, os americanos precisaram dar uma outra utilidade para a bomba. Afinal de contas, não fazia mais sentido bombardear Tóquio. Rufus foi mandada de volta para o Laboratório Nacional de Los Alamos, em Washington DC, que havia sido responsável pela sua construção. Lá, ela passaria por diversos outros testes.

A ideia era utilizar Rufus “para o bem do conhecimento científico”, e mais especificamente eles queriam entender como o plutônio se torna “crítico” ou “supercrítico”. O plutônio, assim como o urânio, por exemplo, emite radiação eletromagnética, e também partículas altamente energizadas: alfa, beta e nêutrons.

Quando você confina, de alguma forma, os nêutrons, e utiliza uma certa quantidade de combustível nuclear, os nêutrons quebram os átomos de plutônio, liberando mais nêutrons e consequentemente quebrando mais átomos, em um processo crescente. Isso gera uma cadeia autossustentável que provoca o chamado “estado crítico”, em que não é mais necessário ajuda externa para que os átomos seja quebrados.

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Deixando de lado a parte mais técnica, toda essa reação em cadeia também gera muito calor – o que explica como funcionam os reatores nucleares. Esses reatores usam o calor para ferver água e movimentar uma turbina, o que gera eletricidade.

Quando o assunto são as bombas atômicas, o princípio é basicamente o mesmo, mas o objetivo é outro: atingir um estado “supercrítico”, em que a reação nuclear não apenas se mantenha, mas também aumente de intensidade com o tempo. Fazendo isso de forma violenta, você alcança os resultados esperados para uma bomba atômica como a Little Boy.

Nesta bomba em específico, que foi arremessada contra Hiroshima, os cientistas faziam com que dois pedaços de urânio se chocassem dentro da bomba, alcançando a massa crítica. A Fat Man, por outro lado, assim como a Rufus, usava outro princípio – o da implosão. Nela, a esfera de plutônio passa por um processo de compressão a partir de uma onda de choque.

Em Los Alamos, os cientistas decidiram inovar, e colocar em prática uma outra ideia, que consistia em confinar os nêutrons até que o plutônio entrasse no estado crítico.

Fazendo isso, eles conseguiriam determinar qual era a quantidade mínima de nêutrons para atingir esse resultado. Os testes começaram em 21 de agosto de 1945, logo depois da rendição japonesa, e com a guerra ainda em andamento. E um dos líderes dos experimentos era Harry Daghlian, físico americano ainda no começo da sua carreira, com 24 anos de idade.

Para testar a ideia, Daghlian cercou o núcleo (uma bola de plutônio) com blocos de tungstênio, que possuem a propriedade de repelir os nêutrons. Daghlian, a partir daí, foi colocando mais e mais blocos de tungstênio, para observar o comportamento da reação com diferentes níveis do material.

Mas antes, que ele colocasse o último bloco na reação, os instrumentos de medição do laboratório começaram a exibir um alerta, avisando que os níveis de nêutrons estavam ficando perigosos. Assustado, Daghlian puxou rapidamente a sua mão, para afastar o bloco do núcleo, porém sua mão escorregou, e o bloco caiu sobre a esfera.

Com isso, a reação atingiu o estado supercrítico, e uma forte onda de calor foi liberada, assim como radiação. Agindo de forma rápida, na base do susto, o cientista conseguiu interromper a reação, evitando algo pior, mas isso não evitou que ele fosse atingido por níveis perigosos de radiação.

Ao todo, ele recebeu 3,1 grays – o que equivale, por exemplo, a 4 mil exames de Raio X, ou 400 exames de tomografia computadorizada de uma vez só. Isso causou queimaduras na sua mão, e vários outros sintomas. Infelizmente, o quadro de Daghlian (que foi levado a um hospital) evoluiu para um estado de coma, e ele morreu alguns dias depois, em 15 de setembro.

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Com a morte do cientista, os responsáveis pelo Laboratório de Los Alamos começou a tomar algumas medidas de proteção para as próximas experiências. Como exemplo, experimentos como o que causou a morte de Daghlian passaram a exigir a presença de dois cientistas, para que um pudesse fiscalizar o outro, teoricamente evitando condutas arriscadas.

Isso não evitou, no entanto, que outros cientistas acabassem se complicando durante os testes. E aí que chegamos na história de Louis Slotin, de 34 anos, veterano do Projeto Manhattan. Segundo relatos da época, Slotin era um cientista que não gostava muito de seguir as regras, mesmo quando lidava com testes perigosos. E isso acabou cobrando um preço bastante alto.

Após o acidente com Daghlian, os cientistas passaram a utilizar duas peças de berílio, material que também repele os nêutrons, para lidar com a esfera de plutônio. O procedimento era teoricamente mais seguro do que a utilização dos blocos de tungstênio, mas para isso o recipiente precisava ficar entreaberto, para que uma parte dos nêutrons resultantes da reação pudessem escapar.

Para isso, era colocado calços entre as peças. Mas como dissemos anteriormente, Slotin não gostava de seguir regras. Por isso, em vez dos calços, ele colocava uma chave de fenda entre as duas peças de berílio. A técnica era tão improvisada quanto irresponsável, mas isso não era nenhuma novidade para os cientistas que trabalhavam no laboratório.

De acordo com relatórios da época, o italiano Enrico Fermi, galardoado com o Prêmio Nobel de Física de 1938, chegou a dizer que Slotin não duraria mais de um ano trabalhando daquela forma.

Em 21 de maio de 1946, a irresponsabilidade de Slotin cobrou o seu preço. Naquele dia, a chave de fenda utilizada pelo cientista escorregou, fazendo com que as duas peças de berílio se fechassem sobre a esfera de plutônio.

Com isso, os nêutrons não tinham mais por onde sair. Como não poderia ser diferente, isso causou um estado supercrítico na reação, liberando uma forte onda de radiação, ionizando até mesmo as moléculas do ar, o que gerou um flash assustador de luz azul. Mesmo agindo rapidamente para abrir a esfera, Slotin recebeu 11 grays de radiação, quase o 4 vezes o que Daghlian havia recebido.

Ele precisou ser internado em um hospital com fortes queimaduras no corpo, além de confusão mental e dificuldade para respirar. Seu quadro também evoluiu para um coma, e ele morreu dois dias depois. O físico Alvin Graves, de 34 anos, que também estava na sala na hora do acidente, absorveu 1,9 gray de radiação.

Ele viveu por 19 anos depois do ocorrido, tendo falecido por conta de um infarto. Segundo os médicos, o infarto foi provocado por um hipotireoidismo severo, que pode ter tido influência da radiação. Marion Cieslicki, outro físico envolvido no projeto, recebeu 0,15 gray, e morreu de leucemia aos 42 anos de idade. Dwight Young, que trabalhava como fotógrafo no dia do acidente, morreu aos 83 anos de idade, quase 30 anos depois, por conta de uma anemia grave.

Do mesmo jeito, o segurança Patrick Joseh Cleary recebeu 0,41 grays, e não teve sequelas do acidente. O núcleo da bomba foi apelidado de “demon core”, algo como “núcleo demoníaco”, e nunca mais foi utilizado em testes. O material foi derretido e utilizado para a construção de outras bombas – detonadas em teste nucleares mais tarde.

No fim das contas, a bomba americana construída para detonar a capital japonesa, Tóquio, acabou por vitimar uma série de cientistas americanos, mesmo que nunca tenha sido detonada.

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Leonardo Ambrosio tem 26 anos, é jornalista, vive em Capão da Canoa/RS e trabalha como redator em diversos projetos envolvendo ciências, tecnologia e curiosidades desde 2014.