Uma jovem de 24 anos enfrentou um pesadelo médico ao perder parte do corpo após contrair uma doença medieval conhecida como “fogo sagrado”. Tudo começou com uma sensação intensa de queimação nas pernas, que se estendia das coxas até os dedos dos pés. Dois dias depois do início dos sintomas, ela decidiu procurar atendimento em uma clínica. Os médicos notaram que seus pés estavam descoloridos e que ela tinha dificuldade para caminhar. Apesar da queimação relatada, suas pernas estavam frias ao toque, e os pulsos nas artérias poplíteas (atrás dos joelhos) e pediais (no pé) eram inexistentes.
Exames de tomografia revelaram um estreitamento grave nas artérias das pernas, reduzindo drasticamente o fluxo sanguíneo. Os médicos administraram anticoagulantes, o que aliviou a dor e permitiu que o sangue voltasse a circular, aquecendo gradualmente os membros.
Porém, o dano já estava feito: um dos dedos do pé desenvolveu gangrena e precisou ser amputado. O diagnóstico? Ergotismo — uma condição rara hoje, mas que no passado causou epidemias mortais e até inspirou lendas sobre possessão demoníaca.

Os pés da mulher ficaram descoloridos e frios ao toque.
O que é o ergotismo?
O ergotismo é causado pelo consumo de alimentos contaminados pelo fungo Claviceps purpurea, que cresce principalmente no centeio. Esse fungo produz substâncias tóxicas chamadas alcaloides do ergot, capazes de desencadear sintomas assustadores. Em casos como o da jovem, a doença afeta a circulação, provocando vasoespasmos (contração repentina das artérias) que levam à falta de irrigação sanguínea, gangrena e necrose.
Em outras situações, o envenenamento causa convulsões, alucinações e espasmos musculares — sintomas que, na Idade Média, eram frequentemente atribuídos a forças sobrenaturais.
Uma doença com história
O primeiro registro de uma epidemia de ergotismo na Europa data de 857 d.C., na Alemanha. Nos séculos seguintes, surtos semelhantes assolaram França, Escandinávia e outras regiões. Estudos citam pelo menos 83 epidemias documentadas a partir de 945 d.C., com relatos de milhares de mortes. A ligação entre a doença e o consumo de centeio contaminado só foi descoberta em 1676, mas ainda demorou mais de um século para que medidas eficazes fossem adotadas.
No final do século XVIII, o médico francês Antoine Tessier testemunhou uma epidemia devastadora em Sologne, na França, que matou mais de 8 mil pessoas. Ele recomendou estratégias como drenagem de campos, limpeza rigorosa dos grãos e substituição do centeio por batatas em regiões de risco. Essas práticas, somadas a avanços na agricultura e no controle de qualidade dos alimentos, tornaram o ergotismo uma condição extremamente rara no mundo moderno.
Por que o nome “fogo sagrado”?

Santo Antônio é creditado por auxiliar em uma série de curas milagrosas, principalmente do ergotismo, que ficou conhecido como “Fogo de Santo Antônio”.
Na Idade Média, a doença era chamada de “Fogo de Santo Antônio” — uma referência à Ordem dos Hospitalários de Santo Antônio, grupo religioso que cuidava dos doentes. Acredita-se que o nome venha da sensação de queimação descrita pelas vítimas, associada a visões religiosas ou à ideia de “purificação pelo fogo”. Alguns registros medievais descreviam pacientes com membros enegrecidos e secos, como se tivessem sido carbonizados, enquanto outros entravam em estados de delírio, interpretados como possessão demoníaca.
Como o ergotismo é tratado hoje?
O caso da jovem mostra que, mesmo com diagnóstico rápido, as sequelas podem ser graves. O uso de anticoagulantes ajuda a restaurar a circulação, mas tecidos já necrosados exigem intervenção cirúrgica. Atualmente, surtos são praticamente inexistentes graças ao monitoramento de plantações e às técnicas de moagem que eliminam partes contaminadas dos grãos. Ainda assim, o fungo Claviceps purpurea segue presente na natureza, lembrando que a relação entre humanos e microrganismos pode ser tão complexa quanto perigosa.
Enquanto isso, historiadores e médicos continuam estudando o ergotismo não apenas como uma doença, mas como um fenômeno que moldou práticas agrícolas, crenças populares e até a medicina moderna.