Há muito tempo, agricultores locais do Vale Chincha, no Peru, conhecem a existência de artefatos extremamente antigos (e igualmente curiosos), encontrados de tempos em tempos na região. Estamos falando de uma série de vértebras humanas, espetadas por um pedaço de madeira, encontradas de tempos em tempos na região. Mas foi somente nos últimos anos que os arqueólogos e cientistas realmente começaram a se debruçar sobre este curioso fenômeno.
Segundo um estudo publicado na revista Antiquity, em fevereiro de 2022, grupos indígenas antigos provavelmente usaram esses “espetos” para remontar os corpos das pessoas que eram brutalmente mortas ou até mesmo violadas após a morte durante os saques espanhóis. “Essas vértebras em pequenos espetos provavelmente foram feitas para reconstruir os mortos em resposta aos saques de túmulos”, explicou o arqueólogo Jacob Bongers, da Universidade de East Anglia, um dos principais autores do estudo. “Nossas descobertas sugerem que as vértebras representaram uma resposta direta e ritualizada dos indígenas ao colonialismo europeu”.
Bongers e sua equipe estudaram 192 “espetos” encontrados no Vale Chincha, que já foi a localização do poderoso Reino Chincha. A maioria desses espetos foi encontrada em túmulos antigos conhecidos como “chullpas”, que costumavam abrigar centenas de pessoas. Todos, com a exceção de um, continham a coluna vertebral de uma única pessoa. Curiosamente, a datação por radiocarbono mostra uma disparidade entre o momento em que os ossos foram enterrados e quando foram colocados juntos. Os ossos datam do início do século 16, até cerca de 1530 – mas foram colocados todos juntos quase 40 anos depois. Esse intervalo de datas corresponde à chegada dos espanhóis ao Peru, levando o caos, saqueando e destruindo, entre outras coisas, muitas sepulturas indígenas. “A pilhagem e sepulturas indígenas foi generalizada em todo o vale de Chincha durante o período colonial”, explicou Bongers. “Os saques destinavam-se principalmente a remover bens funerários feitos de ouro e prata, e também estavam de mãos dadas com os esforços europeus para erradicar práticas religiosas indígenas e seus costumes funerários”.
Em outras palavras, podemos dizer que os europeus tinham dois objetivos ao saquear os túmulos da região. Eles queriam coletar os tesouros enterrados, é claro, mas também tinham um outro objetivo muito forte: Destruir as crenças indígenas, forçando as pessoas a seguirem as tradições cristãs. Mas a população local resistiu. Para eles, a integridade do corpo após a morte era essencial. E Bongers e sua equipe acreditam que isso os levou a revisitar os túmulos destruídos – e começar a colocar as espinhas em pequenos espetos, tentando remontar os corpos de seus ancestrais. “Quando você olha para todos os dados que coletamos, tudo isso apoia a ideia de que eles foram feitos depois que os túmulos foram saqueados”, explicou Bongers.
O REINO CHINCHA
Entre os anos 1000 e 1400, o Reino Chincha governou uma ampla região no Peru, e ele é descrito por Bongers como “uma sociedade rica e centralizada, que dominou o Vale Chincha durante o período intermediário, época que precede o Império Inca”. Durante o século XV, o Reino Chincha foi consumido pelo Império Inca, ainda que mantivesse algum nível de autonomia. Mas a chegada dos europeus devastou os indígenas que viviam por lá. Entre 1533 e 1583, o número de chefes de família caiu de 30 mil para apenas 979, enquanto as pessoas lutavam contra a fome e as epidemias trazidas pelos europeus. Bongers explicou que essas artefatos encontrados na região ajudam a entender a “turbulência” sofrida pelas pessoas no Vale Chincha durante essa época.
“O ritual desempenha um papel importante na vida social e religiosa, mas pode ser contestado, especialmente durante os períodos de conquista em que se estabelecem novas relações de poder”, observou. “Essas descobertas reforçam como os túmulos são uma área onde esse conflito se desenrola. As práticas mortuárias são, sem dúvida, o que nos torna humanos – essa é uma das principais características distintivas da nossa espécie”, disse Bongers. “Ao documentar as práticas mortuárias, estamos conhecendo diversas maneiras pelas quais as pessoas mostraram sua humanidade”, concluiu.
Com informações do All That’s Interesting.