Se você já assistiu ao seriado ‘American Horror Story’ ou de alguma forma se interessa pelo folclore e pelas lendas americanas, provavelmente já ouviu falar sobre a história de Edward Mordrake. De acordo com a lenda, famosa nos Estados Unidos, Mordrake era um homem extremamente inteligente, e dotado de um grande talento artístico e musical. No entanto, as histórias contam que o rapaz tinha também uma maldição terrível – uma segunda face na parte de trás da cabeça, que supostamente sussurrava coisas horríveis.

A primeira vez que essa história chegou ao público em geral foi em 8 de dezembro de 1895, por meio de um artigo do ‘Boston Sunday Post’, escrito por Charles Lotin Hildreth. No artigo, o autor citava informações da “Royal Scientific Society” (algo como Sociedade Científica Real), dizendo que a suposta entidade britânica possuía registros sobre a rara condição de Mordrake.
Segundo a história original, escrita por Hildreth, Edward Mordrake sofreu durante muitos anos com a sua “segunda face”, que nas palavras do próprio autor “sussurrava coisas que só poderiam ser ditas no inferno”. Enquanto Mordrake sofria e chorava, a segunda face sorria e dava risada. Eventualmente, o rapaz teria se cansado deste tormento, e acabou por tirar a sua própria vida aos 23 anos de idade, deixando para trás apenas um bilhete, onde pedia para que a face maligna fosse destruída após a sua morte, temendo que a face continuasse a lhe atormentar no caixão.

O público americano ficou impressionado com a história, e rapidamente ela se tornou uma lenda urbana nos Estados Unidos. Não é à toa, por exemplo, que um episódio da série “American Horror Story” abordou este tema, trazendo novamente popularidade ao mito de Mordrake.
Por mais que a história pudesse parecer bizarra, mesmo para os padrões dos anos 1890, ela ganhou certa credibilidade depois que, em 1896, os médicos americanos George Gould e Walter Pyle incluíram esta história em um livro, intitulado “Anomalies and Curiosities of Medicine” (‘Anomalias e Curiosidades da Medicina’). Gould e Pyle eram oftalmologistas conceituados nos EUA, por isso a inclusão da história em uma das suas publicações fez com que ela ganhasse ainda mais credibilidade.
Porém, ao que tudo indica, eles foram induzidos ao erro.
O autor Alex Boese, no blog ‘Museum of Hoaxes’, dedicou bastante tempo à análise da história de Edward Mordrake, tentando descobrir se ela realmente aconteceu, ou se não se passa de um conto fictício. E um dos primeiros problemas levantados por Boese foi o fato de o autor do artigo original, lá em 1895, era muito conhecido por escrever histórias de ficção. Além de escrever ocasionalmente para os jornais da época, Charles Lotin Hildreth era um conhecido poeta e escritor de livros de fantasia. Claro que não podemos condenar toda a história apenas por causa destes fatos, mas certamente eles são um ponto de partida para analisar a veracidade do caso.
Os problemas ficam maiores, no entanto, quando Boese afirma que a entidade citada por Hildreth, a “Royal Scientific Society”, nunca existiu de verdade. É fato que a “Royal Society of London” (Sociedade Real de Londres) existe há vários séculos, mas nunca existiu uma sociedade real destinada apenas à ciência, como o autor quis induzir em sua publicação. Entretanto, Boese admite que para a sociedade americana da época, o nome da sociedade fazia todo o sentido – o que pode ter contribuído para a sua credibilidade.
Além disso, vale destacar que em todo o acervo da Royal Society of London não existe nenhum indício da anomalia citada por Hildreth. A base de dados da sociedade pode ser consultada on-line, e lá você pode encontrar detalhes sobre as mais assustadoras e bizarras anomalias humanas. Mas não há nenhum sinal de pessoas com duas faces – principalmente conversando entre si. “Ao percebermos isso, ficou aparente que o artigo de Hildreth era ficção. Tudo isso surgiu da sua imaginação, incluindo Edward Mordrake”, escreveu Boese em seu artigo.
Você pode estar se perguntando como a imprensa americana publicou uma história sem checar a veracidade dos fatos, mas a verdade é que isso não era tão raro assim naquela época. Mesmo no Brasil, em épocas antigas, era comum que os folhetins e jornais publicassem histórias sensacionalistas e fictícias, como se fossem verdade, apenas para vender mais exemplares. Algumas publicações, inclusive, eram especialistas em histórias mirabolantes, que pareciam verdade mas, no fim das contas, eram totalmente inventadas. Este não era o caso específico do Boston Sunday Post, mas ao que tudo indica, Hildreth tinha bastante abertura dentro da publicação para publicar aquilo que queria. Além disso, é claro, os critérios de noticiabilidade e os procedimentos de checagem não eram levados tão a sério quanto hoje em dia.