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Durante a década de 1790, homem chamado apenas de “Tarrare” ficou conhecido como um soldado do Exército Revolucionário Francês com um apetite que ultrapassava todos os limites humanos.
Mesmo já tendo quadruplicado seus suprimentos de rações, o Exército tinha dificuldade em alimentar este soldado. Depois de comer o suficiente para alimentar quatro homens, Tarrare ainda vasculhava as pilhas de lixo, engolindo cada pedaço de comida descartada que ele encontrava. Mas ele nunca estava satisfeito.
Mesmo com todo esse apetite, o jovem soldado pesava pouco mais de 45kg, e mostrava claros sinais de desnutrição. De acordo com relatos da época, Tarrare era uma figura assustadora por vários motivos, mas principalmente porque exalava um cheiro muito forte, que afastava qualquer um que ousasse chegar perto dele.
De qualquer forma, dois cirurgiões militares estavam intrigados demais com a sua situação para simplesmente deixá-lo de lado. Por isso, Tarrare passou a ser examinado de perto por dois médicos: Courville e Barão Percy.
Gustave Doré/Wikimedia Commons
O apetite descomunal de Tarrare esteve presente durante toda a sua vida. Inclusive, segundo a história que se conta sobre o garoto, ele chegou a ser expulso de casa porque seus pais não conseguiam arcar com os gastos da sua alimentação.
Por isso, ele precisou ganhar a vida como um “showman”, se apresentando de cidade em cidade. Durante um bom tempo, ele se associou com uma série de criminosos, que roubavam o público enquanto ele se apresentava como “o homem que podia comer qualquer coisa”.
Existem vários relatos de supostas testemunhas que assistiram aos seus shows, que dizem que ele mastigava quantidades absurdas de frutas de uma só vez, e que até mesmo comia animais vivos. “Ele agarrou um gato vivo com os dentes, estripou o animal, chupou seu sangue e começou a comê-lo, deixando apenas o esqueleto.
Ele também comia cães da mesma maneira. Em uma ocasião foi dito que ele engoliu uma enguia viva sem mastigá-la”, diz um dos relatos da época.
O homem era uma incógnita para a maioria dos médicos da época. Com 17 anos de idade, ele pesava apenas 45kg, mesmo comendo absolutamente tudo o que via pela frente. Sua pele, no entanto, teve que se esticar de forma surreal para abrigar tanta comida.
Quando ele comia, seu corpo inchava como se fosse um balão, principalmente na região do estômago. Mas bastava que ele fosse ao banheiro para que, em seguida, voltasse ao tamanho normal. Quando seu estômago estava vazio, sua pele caía tanto que era possui amarrar as dobras de pele em volta da cintura, como se fosse um cinto.
Suas bochechas também eram extremamente caídas, “como as orelhas de um elefante”, diz um relato da época. Essas dobras de pele eram parte do segredo de como ele conseguia colocar tanta comida na boca. Sua pele se esticava como um elástico, deixando-o colocar quantidades inacreditáveis de alimento para dentro. Mas sua alimentação totalmente maluca também criava um cheiro horrível, como os médicos escreveram em seus registros:
“Ele muitas vezes fedia a tal ponto que não se podia suportar a uma distância de vinte passos”. Ainda de acordo com os médicos, o corpo do homem era sempre quente ao toque, e pingava um suor constante que fedia como água de esgoto.
Em determinado momento da sua vida, ele desistiu da carreira artística para defender a liberdade da França. Mas o Exército não o queria.
Mesmo assim, o general Alexandre de Beauharnais estava convencido de que Tarrare poderia ser útil. E para ter certeza de que o rapaz era o homem certo para sua missão, ele fez um teste: Colocou um documento dentro de uma pequena caixa de madeira e fez com que Tarrare engolisse o objeto. Horas mais tarde, quando o corpo expeliu todas as monstruosidades que ele havia comido, um pobre e infeliz soldado recebeu a tarefa de limpar a sua sujeira em busca do documento. E para a surpresa de todos, ele ainda estava legível.
Alexandre de Beauharnais | Wikimedia Commons
Por isso, Tarrare recebeu sua primeira missão. Disfarçado de camponês prussiano, ele deveria passar furtivamente pelas linhas inimigas e entregar uma mensagem ultra-secreta para um coronel francês que havia sido capturado.
Mas ele não chegou longe. Não demorou muito para que o exército inimigo percebesse que ele não falava alemão, e que na verdade se tratava de um espião francês. Ele foi despido, revistado, chicoteado e torturado por quase um dia, até sucumbir aos inimigos e contar sua verdadira missão. Ao saber da verdade, os soldados prussianos amarraram Tarrare a uma latrina e aguardaram.
No fim das contas, quando a caixa de madeira foi expelida pelo corpo do francês, todos se surpreenderam com o conteúdo: Um pequeno pedaço de papel, com uma mensagem que pedia para o destinatário informar se Tarrare havia conseguido entregar a mensagem com sucesso.
Tudo não passava de um teste. No final das contas, o general de Beauharnais ainda não confiava 100% no homem. Revoltados, porém piedosos com a situação do homem, os soldados prussianos pouparam sua vida e mandaram ele de volta para a França, não sem antes espancá-lo, é claro.
De volta à França, Tarrare implorou ao exército que nunca mais fosse enviado em missões desta natureza. Ele implorou aos médicos por uma solução para o seu problema, e Barão Percy fez o melhor que podia.
O médico fez vários testes, usando vinagre, pílulas de tabaco e vários outros remédios que pudessem ajudar a saciar o incrível apetite do paciente. Mas nada funcionava. Ao longo dos anos que seguiram, Tarrare foi flagrado bebendo sangue de pacientes de um hospital, e até mesmo comendo carne humana em necrotérios.
Tarrare morreu em 1798, de tuberculose, e a descrição da sua autópsia é digna de filmes de terror: “As entranhas estavam putrefatas, imersas em pus. O fígado era excessivamente grande, sem consistência e em estado de putrefação. A vesícula biliar era de magnitude considerável. O estômago, em estado frouxo, e com manchas ulceradas espalhadas ao seu redor, cobriam quase toda a região abdominal”.
Até hoje, a falta de elementos totalmente confiáveis do ponto de vista médico, bem como o fato de tudo ter acontecido há mais de 300 anos, fazem com que a ciência não saiba ao setor o que acontecia com Tarrare. De qualquer forma, sua história, tão assustadora quanto nojenta, sobrevive à passagem do tempo e até hoje é recontada diversas vezes.