Nas profundezas escuras do Oceano Atlântico Sul, um encontro histórico aconteceu. Após décadas de buscas, pesquisadores finalmente conseguiram filmar uma lula-colossal viva em seu habitat natural. O feito, realizado por uma equipe do Instituto Schmidt Ocean, marca um avanço monumental no estudo desses animais enigmáticos, que até então só eram conhecidos por restos encontrados em estômagos de baleias ou encalhados em praias.
O registro ocorreu em 9 de março, a 600 metros de profundidade, próximo às Ilhas Sandwich do Sul. Utilizando um veículo subaquático operado remotamente (ROV), os cientistas a bordo do navio de pesquisa Falkor (too) capturaram imagens de um exemplar juvenil de lula-colossal (Mesonychoteuthis hamiltoni), com cerca de 30 centímetros de comprimento. A transparência do corpo, característica da família das lulas-vidro (Cranchiidae), revelou detalhes fascinantes sobre a espécie em estágio inicial de vida.
“É emocionante ver o primeiro registro in situ de um juvenil e pensar que, para eles, nós simplesmente não existimos”, comentou a bióloga Dra. Kat Bolstad, especialista em cefalópodes da Universidade de Tecnologia de Auckland, que ajudou a confirmar a identificação do animal. A cientista destacou que, por mais de um século, o conhecimento sobre a espécie dependia de fragmentos recuperados de predadores ou de cadáveres.
Um Gigante em Crescimento
Apesar do tamanho modesto do indivíduo filmado, a lula-colossal é o invertebrado mais pesado do planeta. Quando adulta, pode atingir até 7 metros de comprimento e pesar 500 quilos. Em comparação, a lula-gigante (Architeuthis dux), mais longa (até 13 metros), é mais leve, com cerca de metade desse peso. A transparência do corpo, comum nos juvenis, desaparece com a idade, dando lugar a uma coloração mais escura.
A descoberta ganha ainda mais relevância por coincidir com os 100 anos da identificação da espécie. Em 1925, partes de uma lula desconhecida foram encontradas no estômago de um cachalote nas Ilhas Shetland. Os restos, levados ao Museu Britânico, deram origem à descrição científica da Mesonychoteuthis hamiltoni. Desde então, nenhum exemplar vivo havia sido documentado.
Detalhes que Fazem a Diferença
A confirmação da espécie não foi trivial. Em 2023, uma expedição da organização Kolossal à Antártida registrou uma lula-vidro de 10 a 12 centímetros, mas a baixa qualidade das imagens deixou dúvidas. Desta vez, a clareza do vídeo permitiu identificar um traço único: a presença de ganchos no meio dos oito tentáculos, uma característica exclusiva da lula-colossal.
“Esses ganchos são como uma impressão digital. Eles confirmam que estamos diante de um Mesonychoteuthis“, explicou o Dr. Aaron Evans, especialista em lulas-vidro que participou da análise. A descoberta foi possível graças a uma colaboração internacional: enquanto a equipe do Falkor (too) coletava dados, cientistas de diversos países acompanhavam as imagens em tempo real, validando as observações ao vivo.
Tecnologia e Cooperação
A expedição faz parte do projeto Ocean Census, uma iniciativa global que busca acelerar a descoberta de espécies marinhas. “Usamos a telepresença para conectar especialistas de todo o mundo, mesmo no meio do oceano”, destacou a Dra. Michelle Taylor, líder da equipe científica. O uso de ROVs de alta tecnologia permitiu explorar regiões abissais com precisão, abrindo novas fronteiras para a biologia marinha.
Para os pesquisadores, o registro do juvenil é tão valioso quanto encontrar um adulto. “Essa fase inicial nos ajuda a entender como a espécie se desenvolve e interage com o ecossistema”, completou Bolstad. Além disso, as imagens desafiam a visão de que criaturas das profundezas são “monstros assustadores”. A lula-colossal juvenil, com seu corpo delicado e quase cristalino, mostra uma beleza que contrasta com a fama de “terrível” atribuída a seus parentes gigantes.
O que Ainda Está por Vir
Apesar do avanço, muitas perguntas permanecem. Como essas lulas se reproduzem? Qual é sua dieta exata? Como interagem com outros habitantes do oceano profundo? Cada nova expedição traz pistas, mas o ambiente hostil das profundezas – com pressões extremas e ausência de luz – ainda dificulta estudos prolongados.
Enquanto isso, o vídeo do juvenil segue como um tesouro científico. Ele não apenas encerra um século de buscas, mas também inaugura uma nova fase na pesquisa sobre um dos animais mais misteriosos do planeta. E, quem sabe, pode ser o primeiro passo para desvendar segredos que o oceano guarda há milhões de anos.