Estruturas gigantes “em forma de ilha” ao redor do núcleo da Terra são mais antigas – e mais estranhas – do que pensávamos

por Lucas Rabello
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Nas profundezas do nosso planeta, escondidas sob a África e o Oceano Pacífico, existem duas estruturas colossais que desafiam a compreensão humana. Conhecidas como grandes províncias de baixa velocidade de cisalhamento (LLSVPs, na sigla em inglês), essas “bolhas” estão localizadas na base do manto terrestre, envolvendo o núcleo externo. Juntas, ocupam entre 3% e 9% do volume total da Terra. Mas como algo tão gigantesco permaneceu desconhecido por tanto tempo? E o que exatamente são essas formações misteriosas?

Enxergando o Invisível: A Ciência por Trás da Descoberta

Ninguém jamais viu diretamente o núcleo da Terra — e, convenhamos, não é uma viagem que alguém possa fazer. A temperatura e a pressão extremas transformariam qualquer sonda em cinzas antes que chegasse perto. Porém, os cientistas encontraram uma maneira engenhosa de explorar o interior do planeta: analisar as ondas sísmicas geradas por terremotos.

Quando um terremoto ocorre, ele libera energia que se propaga em ondas através das camadas terrestres. Sensores na superfície captam essas vibrações, e, ao comparar os dados de múltiplos locais, é possível criar um mapa detalhado do que há embaixo de nossos pés. Essa técnica, chamada tomografia sísmica, revelou pela primeira vez as LLSVPs no final dos anos 1970. Nessas regiões, as ondas sísmicas viajam mais devagar do que no restante do manto inferior, indicando que o material ali é diferente — mais denso e provavelmente mais quente.

Descobriu-se que as LLSVPs contêm grãos grandes.

Descobriu-se que as LLSVPs contêm grãos grandes.

“Sabemos há décadas que essas estruturas estão na fronteira entre o núcleo e o manto. As ondas desaceleram porque as LLSVPs são quentes, assim como você não consegue correr tão rápido em um dia de calor”, explica Arwen Deuss, geofísica da Universidade de Utrecht e coautora de um estudo recente sobre o tema. Uma das bolhas, batizada de “Tuzo” (sob a África), tem cerca de 800 quilômetros de altura — o equivalente a empilhar 90 Monte Everests.

De Onde Vieram? Teorias Surpreendentes

A origem das LLSVPs ainda é um quebra-cabeça, mas há hipóteses fascinantes. A primeira sugere que elas são acúmulos de crosta oceânica subductada — placas tectônicas que mergulharam para o manto ao longo de bilhões de anos e se aglomeraram nessa região profunda. Deuss menciona um “cemitério de placas tectônicas” ao redor das bolhas, formado por processos de subducção.

A segunda teoria é ainda mais intrigante: as LLSVPs poderiam ser fragmentos de um planeta antigo. Há cerca de 4,5 bilhões de anos, um corpo celeste do tamanho de Marte, chamado Theia, colidiu com a Terra. O impacto teria ejetado material que formou a Lua — e parte do manto denso de Theia pode ter se fundido com o da Terra, criando essas estruturas. Em 2021, simulações mostraram que, se o manto de Theia fosse apenas 1,5% a 3,5% mais denso que o da Terra, seus restos poderiam sobreviver até hoje como as LLSVPs.

Novas Pistas: Grãos Gigantes e Ondas “Barulhentas

Um estudo recente, publicado na revista Nature, trouxe insights inesperados. A equipe analisou não apenas a velocidade das ondas sísmicas, mas também a atenuação — a perda de energia que ocorre quando as vibrações atravessam materiais diferentes. “Medimos o ‘volume’ do som das ondas. Nas LLSVPs, os tons eram altos, indicando pouca perda de energia. Já no ‘cemitério’ de placas subductadas, o som era suave, com muita atenuação”, detalha Sujania Talavera-Soza, coautora da pesquisa.

A diferença está no tamanho dos grãos minerais. As placas subductadas no “cemitério” são formadas por grãos pequenos, que se quebram e se rearranjam durante a descida ao manto. Cada fronteira entre os grãos absorve energia das ondas, amortecendo o som. Já as LLSVPs têm grãos grandes, que minimizam essas perdas. “Isso sugere que as bolhas são estruturas antigas e rígidas, que não participam ativamente da convecção do manto”, explica Ulrich Faul, do Instituto de Tecnologia de Massachusetts.

Implicações: Do Núcleo aos Vulcões

Se as LLSVPs são tão estáveis quanto indicam os grãos grandes, isso muda nossa visão sobre a dinâmica do manto terrestre. A convecção — o movimento lento de rochas quentes subindo e frias descendo — pode não ser tão uniforme como se imaginava. “O manto é o motor que impulsiona vulcões, terremotos e a formação de montanhas. E as plumas mantélicas, responsáveis por vulcões como os do Havaí, provavelmente se originam nas bordas das LLSVPs”, afirma Deuss.

Embora nunca possamos observar diretamente essas bolhas, os dados sísmicos coletados desde os anos 1970 continuam a revelar segredos. Cada terremoto, mesmo os menores, é como um flash que ilumina o interior do planeta. E, aos poucos, essas pistas acústicas estão nos ajudando a desvendar um dos maiores mistérios geológicos da Terra.

Lucas Rabello
Lucas Rabello

Fundador do portal Mistérios do Mundo (2011). Escritor de ciência, mas cobrindo uma ampla variedade de assuntos. Ganhou o prêmio influenciador digital na categoria curiosidades.

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